LONDINIUM
Fernanda Torres, Revista VEJA - Rio
Passei uma semana em Londres. Na última vez em que estive lá, multiplicava-se o preço em libras por sete para saber quanto as coisas custavam em reais. Agora, pasmo, o caro é sobreviver aqui no Rio.
O verão londrino é tão frio quanto o outono/inverno carioca. Isso faz pensar na falta de sol que aquela ilha deve enfrentar de outubro a maio todos os anos. Saí de casa com pena de perder os dias frescos, mas bastaram algumas horas de espera no vergonhoso terminal do Aeroporto do Galeão para ser tomada pelo desejo incontrolável de ir embora.
Depois de deixar a polícia, o turista desavisado dispõe apenas de uma lanchonete encardida e um diminuto free shop para resolver as emergências. Não há farmácia e, detalhe impressionante, não há nem uma banca de jornal nos portões de embarque.
Qualquer rodoviária tem jornaleiro, será que a porta de saída do Rio de Janeiro é um negócio tão arriscado que não vale a pena montar nem uma desgraça de uma tenda de revistas no corredor de tapumes do Tom Jobim?
Deixei a prova do desmantelo fluminense para trás e cruzei o Atlântico.
Londinium é reconhecida como um centro de comércio e prosperidade desde os tempos do historiador romano Tacitus, 900 anos atrás. Durante séculos, aprimoraram-se, ali, as regras da convivência e o limite da liberdade pessoal.
Meu filho menor, em um movimento digno de uma tartaruga ninja, puxou a alavanca vermelha de emergência ao lado do assento do metrô. O alarme disparou dentro do túnel e continuou zumbindo até chegarmos à próxima estação. Ninguém brigou, não houve cara feia. O vagão riu com sobriedade e voltou para a sua rotina de sempre. Isso em plena era de ameaças terroristas. Um senhor me aconselhou a informar o funcionário da estação sobre o ocorrido, o que fiz prontamente.
Não houve bronca, mas também não senti bom-mocismo em ninguém. É através do pragmatismo cortês que o inglês espera que o resto da humanidade aprenda as regras de sua civilidade.
Um taxista leva quatro anos para tirar a carteira e dirige com a propriedade de quem possui curso superior. De 100 inscritos, apenas um ganha o direito de conduzir nas centenárias ruas. Sabem de cor as mais de 10 000 vielas e avenidas da capital e servem de guia quando preciso.
Com um distanciamento caloroso, eles devotam a mesma atenção aos bêbados, às senhoras idosas, aos bebês barulhentos e aos compatriotas cientes da etiqueta.
Tenho um casal de amigos que se mudou para Richmond, um subúrbio belíssimo distante trinta minutos de metrô do centro de Londres.
Conversando sobre a estranheza dos hábitos em além-mar, meu amigo observou que o inglês come pouco, virando o garfo para baixo para equilibrar uma porção reduzida de alimento sobre a curva enviesada do talher.
Mãe de suas duas filhas, minha amiga sentiu o disparate entre a nossa cultura e a deles na intimidade das festas infantis. Segundo ela, não se contratam decoradores nem animadores profissionais. Os adultos vêm comidos, não se bate palma no Parabéns e o bolo é cortado e colocado em uma bolsa que as crianças levam para comer em casa.
Eu gosto de bater palmas e acho que engolir o bolo sozinha não tem a mesma graça. Além disso, ficaria frustrada de não empurrar um caminhão de comida goela abaixo com o garfo devidamente virado para cima, mas o Brasil está desenvolvendo uma escravidão consumista para a qual deveríamos ficar atentos. A indústria das celebrações infantis é um exemplo enervante dessa tendência emergente.
“No Brasil, eu era madame, aqui, sou classe média”, disse minha amiga. “É muito bom ser classe média, é uma vida mais simples, libertadora de certa forma.”
A Inglaterra, apesar da rainha, do Parlamento, da libra, do luxo e do Rolls-Royce, é um país de classe média. A rua é um bem comum usufruído por todos e os parques são jardins dignos da realeza ocupados por plebeus educados.
Defendo a tese de que o inglês tem pena de quem não é inglês. O Homo sapiens sapiens é inglês. Os outros podem até ser chamados de Homo, alguns poucos de sapiens, mas só o bretão ostenta essa definição elevada à segunda potência.
O verão londrino é tão frio quanto o outono/inverno carioca. Isso faz pensar na falta de sol que aquela ilha deve enfrentar de outubro a maio todos os anos. Saí de casa com pena de perder os dias frescos, mas bastaram algumas horas de espera no vergonhoso terminal do Aeroporto do Galeão para ser tomada pelo desejo incontrolável de ir embora.
Depois de deixar a polícia, o turista desavisado dispõe apenas de uma lanchonete encardida e um diminuto free shop para resolver as emergências. Não há farmácia e, detalhe impressionante, não há nem uma banca de jornal nos portões de embarque.
Qualquer rodoviária tem jornaleiro, será que a porta de saída do Rio de Janeiro é um negócio tão arriscado que não vale a pena montar nem uma desgraça de uma tenda de revistas no corredor de tapumes do Tom Jobim?
Deixei a prova do desmantelo fluminense para trás e cruzei o Atlântico.
Londinium é reconhecida como um centro de comércio e prosperidade desde os tempos do historiador romano Tacitus, 900 anos atrás. Durante séculos, aprimoraram-se, ali, as regras da convivência e o limite da liberdade pessoal.
Meu filho menor, em um movimento digno de uma tartaruga ninja, puxou a alavanca vermelha de emergência ao lado do assento do metrô. O alarme disparou dentro do túnel e continuou zumbindo até chegarmos à próxima estação. Ninguém brigou, não houve cara feia. O vagão riu com sobriedade e voltou para a sua rotina de sempre. Isso em plena era de ameaças terroristas. Um senhor me aconselhou a informar o funcionário da estação sobre o ocorrido, o que fiz prontamente.
Não houve bronca, mas também não senti bom-mocismo em ninguém. É através do pragmatismo cortês que o inglês espera que o resto da humanidade aprenda as regras de sua civilidade.
Um taxista leva quatro anos para tirar a carteira e dirige com a propriedade de quem possui curso superior. De 100 inscritos, apenas um ganha o direito de conduzir nas centenárias ruas. Sabem de cor as mais de 10 000 vielas e avenidas da capital e servem de guia quando preciso.
Com um distanciamento caloroso, eles devotam a mesma atenção aos bêbados, às senhoras idosas, aos bebês barulhentos e aos compatriotas cientes da etiqueta.
Tenho um casal de amigos que se mudou para Richmond, um subúrbio belíssimo distante trinta minutos de metrô do centro de Londres.
Conversando sobre a estranheza dos hábitos em além-mar, meu amigo observou que o inglês come pouco, virando o garfo para baixo para equilibrar uma porção reduzida de alimento sobre a curva enviesada do talher.
Mãe de suas duas filhas, minha amiga sentiu o disparate entre a nossa cultura e a deles na intimidade das festas infantis. Segundo ela, não se contratam decoradores nem animadores profissionais. Os adultos vêm comidos, não se bate palma no Parabéns e o bolo é cortado e colocado em uma bolsa que as crianças levam para comer em casa.
Eu gosto de bater palmas e acho que engolir o bolo sozinha não tem a mesma graça. Além disso, ficaria frustrada de não empurrar um caminhão de comida goela abaixo com o garfo devidamente virado para cima, mas o Brasil está desenvolvendo uma escravidão consumista para a qual deveríamos ficar atentos. A indústria das celebrações infantis é um exemplo enervante dessa tendência emergente.
“No Brasil, eu era madame, aqui, sou classe média”, disse minha amiga. “É muito bom ser classe média, é uma vida mais simples, libertadora de certa forma.”
A Inglaterra, apesar da rainha, do Parlamento, da libra, do luxo e do Rolls-Royce, é um país de classe média. A rua é um bem comum usufruído por todos e os parques são jardins dignos da realeza ocupados por plebeus educados.
Defendo a tese de que o inglês tem pena de quem não é inglês. O Homo sapiens sapiens é inglês. Os outros podem até ser chamados de Homo, alguns poucos de sapiens, mas só o bretão ostenta essa definição elevada à segunda potência.