Memória
Em busca da prosa simples
Rascunhos e textos inéditos de Jorge Amado poderão em breve ser lidos pela internet. Eles revelam um escritor obcecado em alcançar a maturidade artística
Marcelo Bortoloti
Zélia Gattai/Acervo da Fundação Casa de Jorge Amado
Racionalidade
Jorge Amado, nos anos 1970: metódico na construção
de seus personagens, ele submetia os textos aos familiares
e chegava a reescrever um mesmo capítulo dezenas
de vezes, sem se dar por satisfeito.
Racionalidade
Jorge Amado, nos anos 1970: metódico na construção
de seus personagens, ele submetia os textos aos familiares
e chegava a reescrever um mesmo capítulo dezenas
de vezes, sem se dar por satisfeito.
Fenômeno literário com mais de 20 milhões de livros vendidos em 55 países, o baiano Jorge Amado (1912-2001) foi um frequente alvo dos críticos – que atribuíam seu estilo pouco erudito a certo desleixo, quando não a uma "preguiça", em relação ao texto. Assim resumia nos anos 1940 o modernista Mário de Andrade, em carta ao aspirante a escritor Fernando Sabino, a opinião de intelectuais da época acerca do baiano: "Garanto que você pode ir longe. Mas não como um Jorge Amado, com pouco trabalho, ignorância muita e criação de sobra. Você tem de trabalhar dia por dia. Como um Machado de Assis". Quase uma década depois da morte de Amado, um conjunto de rascunhos datilografados (e muito rasurados) por ele durante a produção de 25 de seus livros descortina um lado até então desconhecido de seu intenso processo criativo. A coleção de papéis – um calhamaço de 17.000 páginas que a Fundação Casa de Jorge Amado, em Salvador, está digitalizando para disponibilizar na internet até agosto – revela um autor extremamente sistemático na construção do texto, capaz de reescrever um mesmo trecho dezenas de vezes, sem se dar por satisfeito. De "possuidor de má fama", por exemplo, o capitão Justiniano Duarte da Rosa, amante da personagem-título de um de seus livros de maior sucesso,Tereza Batista Cansada de Guerra, torna-se (na quarta versão) um sujeito "atrabiliário, violento, brigão, maus bofes e maus instintos".
Há um consenso entre os poucos especialistas que já se debruçaram sobre a pilha de escritos de que ela traz à luz um autor para quem o ato de escrever era profundamente racional – e não motivado pela intuição, como se pensava. Afirma o historiador Alberto da Costa e Silva, estudioso da obra de Jorge Amado: "Seu estilo simples e direto é, na realidade, fruto de um trabalho incansável, que chama atenção pela autocrítica severa e por um esmero nos detalhes". A série de rascunhos revela ainda uma Zélia Gattai, escritora com quem o baiano foi casado por 56 anos, no papel de crítica implacável. Zélia era, antes de tudo, uma revisora atenta, que lia os escritos do marido assinalando os frequentes erros de português (Amado jamais absorveu as mudanças ortográficas estabelecidas em 1943). A escritora, a quem ele se referia como "minha cúmplice na aventura da vida", palpitava ainda sobre o destino dos personagens, construídos meticulosamente. Para se ter uma ideia, às voltas com a criação de Tereza Batista, em 1972, Jorge Amado decidiu, a pedido da mulher, trocar de lugar o dente dourado da protagonista, de modo a escondê-lo. "Cada vez que Tereza sorrir, será uma tristeza", Zélia argumentava. Esse único detalhe consumiu horas a fio de exaustiva discussão. Além das sugestões da mulher, Amado considerava ainda as opiniões da filha Paloma, do irmão James e da cunhada Luíza, que conta a VEJA: "Quando Jorge aprovava uma ideia, ele a acrescentava ao livro, que ia ficando maior a cada nova versão".
Livros inéditos e a mão de Zélia
Os poemas que o baiano escreveu em 1938 são marcados por lugares-comuns (1);
os erros ortográficos nos rascunhos de Gabriela, corrigidos pela mulher (2);
e trechos do romance Rui Barbosa Número 2, de 1932, dominado pelo tom panfletário:
ele gostava de guardar em casa tudo o que escrevia
Os poemas que o baiano escreveu em 1938 são marcados por lugares-comuns (1);
os erros ortográficos nos rascunhos de Gabriela, corrigidos pela mulher (2);
e trechos do romance Rui Barbosa Número 2, de 1932, dominado pelo tom panfletário:
ele gostava de guardar em casa tudo o que escrevia
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