Sobe-se mais um pouco, mas sempre orientado pelo providencial mapa, e na divisão 44, o mausoléu formado de dólmens, cercado de flores de todos os matizes e igualmente de uma pequena multidão que ora, acende velas e traz mais flores. Dizem que é o túmulo mais visitado: Allan Kardec. Encimando os dólmens, a base da sua doutrina: "naitre mourir renaitre encore et progresser sans cesse telle est la loi" e mais abaixo, "as devise preferée: hors la charité, point de salut". Todos rezavam em recolhimento e concentração absoluta, uns mais fervorosos se aproximavam para tocar o busto como se daquele bronze frio pudessem emanar fluidos benéficos do seu espírito. Na mesma divisão quem fica na companhia desse iluminado ser, senão a excêntrica Sarah Bernhardt? Continua "dormindo" no caixão em que repousava em vida. Dizem que Sarah odiava o Brasil porque foi aqui que sofreu o acidente culposo no palco e que a deixou mais tarde mutilada (amputaram-lhe uma perna). Outra alma que "curtia" a excentricidade como gênio que era, também "vive" no "Pére Lachaise". Nascido na Irlanda, cumpriu o seu carma na terra num processo que abalou a era vitoriana - Oscar Wilde - o esteta de Dorian Gray, com seu ardente "affair" Lord Douglas. Imagino-lhe a figura bizarra passeando a sua exagerada elegância pelo Picadilly. Em decorrência do processo que abalou a Inglaterra, ele veio terminar seus dias em terra estranha e aqui está (?) nesta tumba faraônica como convinha à sua excentricidade. Enquanto isso, no "L´Hotel" onde morou, seu quarto vem sendo disputado até hoje por artistas e gente recheada de dólares à espera de terem a honra de dormir na cama do infeliz irlandês, hoje glória da literatura universal. Vai-se caminhando por essas paragens de eterna morada que são repousantes também para aquele que se dispuser a passar umas tantas horas entre esses mortos ilustres que entraram para a história. Rossini e Bizet estão próximos e quem sabe à noite se juntam para reviver suas óperas imortais, ou será que Chopin, nas vizinhanças de Cherubim, troca inspirações sonoras com o italiano, enquanto o poeta Musset tece louvores a "Mimi Pinson"? Alí está Balzac. acrescentará ele à sua "Comédia Humana" mais alguns tipos no afã de conseguir dinheiro para pagar as dívidas que o afliogiram sempre?
O cemitério é um bosque arborizado e muito florido e como estávamos no outono, as folhas já amarelavam e iam coalhando o chão, tecendo um imendo tapete dourado.Era uma quarta feira de trabalho que não atraira visitantes, a não ser no túmulo de Kardec, o que faz supor que o espiritismo acolhe cada vez mais adeptos, já pela necessidade que as pessoas têm de, neste mundo de fim e de começo de milênio conturbado pelas desigualdades sociais, marcado pela violência e pelas doenças misteriosas que vão surgindo (sem falar de economia...), se apegarem a algum tipo de crença; e a verdade é que todos buscam esperança naqueles que deixaram exemplos de amor e bondade. Volto sempre a esse oásis de tranquilidade todas as vezes que vou a Paris, com a mesma intençao de, reverenciando sempre , os apóstolos do bem, renovar-me para a vida diante desse jazigo simples que guarda o corpo de um homem diferente do comum dos mais, vem-me à lembrança meus verdes anos, que me trazem de volta grandes mulheres e momentos, como quando mamãe (ainda cheia de vida...) e vovó (sentia sua presença lá comigo), cujas presenças norteadoras da minha existência - tem toda razão quando diz (e dizia...) - os mortos não morrem, passam sim, para outro lado, mas continuam. Mas o que levou o professor de Lyon a codificar a nova doutrina? Segundo se conhece de sua biografia, Allan Kardec recebera a missão de entidades do espaço que também lhe comunicaram esse pseudônimo, que usara na penúltima encarnação, como sacerdote dos druidas que fora. Seu nome verdadeira era: Léon Hippolyte Denizard Rivail. Encaro a placidez do seu semblante no busto que encima a lápide. Braçadas de flores frescas, reveladoras dos muitos que ainda cultuam sua crença, estão espalhadas em derredor. Choro por dentro lembrando meus motos queridos, mas a mesmo tempo conforta-me a certeza que eles "vivem" e poderiam estar naquele momento ali, aplaudindo o meu gesto: espíritos não têm fronteiras!
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