Saturday 29 January 2011

BLOOD SUCKER´S LAND...


Nos calcanhares de Drácula...  

  
     Há personagens que exercem um fascínio tão intenso em nós que chegam a eclipsar o seu criador. Quem lembra, ou até mesmo tem conhecimento, do autor de Frankenstein?  Quem foi Mary Shelley, de sobrenome célebre, pois que era mulher do poeta inglês? Exatamente ela, a criadora do monstro famoso das telas.

     É o que acontece com outro escritor britânico que inspirado num remoto “herói” daTransilvânia, região dos Cárpatos, na Romênia, criou a lenda do Conde Drácula, que vem desafiando as épocas, ressuscitando através dos “thrillers”, ou seja, os filmes de terror. Bram Stocker é nome pouco conhecido, mas Drácula permanece, talvez pela aura de mistério que sempre o envolveu.

     Na cidadezinha de Shighisoara nasceu um êmulo (rival) quase perfeito de Satã, que viveu entre 1430 e 1476 – seu nome completo era Vlad Tepes Drácula, de origem nobre.

     Os Drácula constituíam uma família de sádicos e parece-nos que o mais célebre deles foi Vlad, cujas torturas que infligia ao inimigo iam da empalação à emasculação, passando por outros apêndices que decepava com extremos requintes de crueldade. Gostava de esfolar viva a vítima que lhe caísse nas mãos, além de cozinhá-la em azeite.

     Foi precedido dessa celebridade execranda que Drácula chegou até nós e, principalmente, pelo estigma de vampiro, que segundo os romenos é pura lenda.  Eles o apontam como um legítimo herói que defendeu sua pátria contra os turcos e dizem que essa história de vampiro deve-se creditar à fértil imaginação do escritor inglês.

     No castelo de Shighisoara há um restaurante com seu nome. Fotos na parede revelam um ser de aparência estranha: nariz adunco que quase lhe ultrapassa os lábios, bigodes mefistofélicos e o olhar entre o irônico e o frio parece nos espreitar.

     Ao penetrar em seus domínios o melhor é munir-nos de réstias da vulgar liliácea, nosso condimento principal, o alho, como reza a tradição.

     Sempre o descrevendo como um bravo que defendeu a Romênia do domínio otomano, os nativos, mesmo assim, aproveitam-se da lenda sinistra para expor à venda, dentre os bonecos típicos, aliás belíssimos, Drácula paramentado de príncipe, todo em púrpura e pedrarias, tendo à cintura uma enorme espada dourada mas, intencional ou não, o rosto e as mãos tem a cor de cera característica dos defuntos. Enquanto que os outros bonecos são rosados como a carnação saudável dos vivos.

     À que vêm agora essas reminiscências de vampiro?

     É o primeiro contato com a Romênia que evoca-nos a figura do demoníaco conde revivido no écran (tela de cinema).

     “O primeiro dever de quem tem uma pena é escrever o que julga ser verdade”. Esta frase nos leva sempre a externar a realidade em forma de franqueza às vezes rude, mas nunca a dourar a pílula, por mais amarga e intolerável que seja ao paladar.

     Referi-mo às primeiras impressões (um tanto precipitadas, creio) sobre este país que embora bloco da “cortina de ferro”, carrega a fama de independente no que tange à hegemonia do curso soviético, haja visto a forte resolução de não aderir ao boicote das olimpíadas, à época em Los Angeles.
     É quase impossível conseguir informações em tão breve tempo da atuação do presidenteNicolae quanto aos contentamentos ou descontentamentos das classes trabalhadoras. No entanto, sabe-se que a Romênia de Ceauscescu tinha o regime mais repressivo do então bloco socialista, e isso já se percebe em poucos dias.

     A eterna dicotomia classe rica/classe pobre, que à luz do socialismo simplesmente não existiria, ali era mais flagrante.

     Nas circuladas pelas ruas de Bucareste observa-se que a mendicância impera e algo mais nos desperta a atenção, uma vez que o problema é familiar no Brasil – os menores abandonados. Não sei se cabe aqui denomina-los assim apenas neste “coup d’oleil” em que se destacam na multidão, mas que são bem semelhantes aos nossos pivetes do Rio e São Paulo, e aos “gamins” de Bogotá, lá isso são.

     Descalços, os pés imundos, as vestes precárias, correm soltos a pedir e a furtar. Garotinhas que não passavam de 10, 12 anos trazem crianças nos braços e pedem esmolas. Antes já vira um policial agarrar um menor que corria parecendo querer fugir de algum delito, ao estilo Praça da Sé ou Largo da Carioca.

     Na Rússia não se vêem crianças (pelo menos quando lá voltei), senão quando acompanhadas dos pais ou de professores, quando em excursões. Muito menos se vêem mendigos, embora se depare a cada passo com bêbados, o que já era um grave problema social, ao ponto de o governo proibir venda de Vodka nos supermercados.

     As crianças da Rússia foram as mais belas que tinha visto por esse mundo afora: bem vestidas, bem calçadas, super agasalhadas, na explosão rosa dos rostinhos, as rosas deSaadi refletiam o aspecto sadio de bem-alimentadas.

     Em Bucareste, vêem-se os “pés sujos” que perambulam pelas ruas. Talvez esses meninos pertençam ao reduto de ciganos que também é vasto e são vistos por toda a parte a mendigar e oferecer a “buena dicha” como se a gente fosse entender e acatar sua algaravia (coisa difícil de entender).

     A alma de um povo conhece-se bem através de sua música e da sua cozinha. O que dizer da cozinha romena?

     Restaurantes de classe não faltam, principalmente os de hotéis que se abrem para o público o dia inteiro. A comida, porém, não mereceria nem uma estrelinha daquelas com que o Apícius do Jornal do Brasil costumava classificar as casas de pasto do Rio de Janeiro. Insossa, inodora, o que nos faz crer que o alho é usado apenas para as escaramuças de Drácula. Carnes de porco, galinha, peixes, tudo com gosto de palha... (que saudades do bacalhau e dos peixes de Lisboa, dias atrás).

     Trouxeram-me o que denominaram de truta e, de fato, “ali tinha truta”, um horror. As sobremesas pouco variadas é que ajudavam a matar a fome... após tais repastos. Dos vinhos nacionais, o Tilenavea soube bem ao paladar viciado nos inolvidáveis franceses e portugueses.

     Vagar sem destino, anônimo na multidão, o importante é o contato vivo com o povo. É a oportunidade, ainda que um tanto superficial, de analisar o seu comportamento e o seu “way of life” – a maneira de caminhar, as expressões fisionômicas, a descontração total ou as tensões, isso tudo revela o estado psicológico da massa. Os tipos que passam por mim ou os que estão à espera nos pontos de ônibus, carregam a angustia na face. Gente triste, inexpressiva e que jamais dá a impressão de felicidade.

     Não possuem a vivacidade e a facilidade de comunicação do russo com as suas dentaduras de ouro sempre à mostra para a gente.

     Se o regime é, como dizem, menos draconiano do que o dos soviéticos (não é verdade), por que então essa carga de tensão que se adivinha no olhar parado, quase sem brilho, como o dos cegos?

     De vez em quando é bom saber onde se está e para onde se vai (não consulto mapas, é mais interessante e aprende-se muito mais procurando os habitantes para captar-lhes as reações de hospitalidade e educação). Se na União Soviética qualquer universitário fala fluentemente dois e até três idiomas, em Bucareste, pouquíssimas pessoas falam francês ou inglês.

     Os colegiais que vou encontrando não entendem nada a não ser sua própria língua e nem são bem informados dos principais estabelecimentos públicos, como por exemplo, os correios gerais.

     A arquitetura da cidade lembra um pouco a de Kiev, capital da Ucrânia, mas não tão simpática. Mania de espaço como na Rússia: avenidas largas e extensas, praças e parques enormes. As ruas ao anoitecer ficam quase às escuras e para justificar as minhas indagações ouvi que, devido dificuldades econômicas, as autoridades viram-se forçadas a racionar drasticamente o consumo de energia.

     Na época era considerado o país mais pobre do leste europeu e sua população estimada em 22.352.635 habitantes.

     Todos são ávidos de dólar e os garçons do hotel não dão trégua, acompanhando-nos nas escadarias. Nos cantinhos, murmurando-nos quase ao pé do ouvido a palavra mágica capaz de abrir todas as portas, exceto as do paraíso. Querem resgatar a sua liberdade em dólar, safando-se do país.

     O transito infernal à hora do “rush” é o salve-se quem puder das grandes metrópoles. Táxi, nem por milagre. Há uma infinidade de bondes, metrô e aqueles nosso velhos conhecidos “papa-filas”, mas nada resolve. As pessoas quase se despencam da porta dos veículos apinhados como no Rio ou Sampa, na tentativa de voltar para casa. E nesse “há-há” toda a ciganada que não inspira a menor confiança pronta a surrupiar-nos a carteira ou, o que é pior, o passaporte.


     Enquanto alinhavo estas notas de observação durante o breve convívio com esta gente amarga, aguardo o jantar em mais um restaurante que espero leve a desmentir a lástima da cozinha romena. No local, lotado, as pessoas vão entrando de sacolas de compras. Percebe-se que no momento o único estrangeiro por aqui sou eu. E me pergunto se as diferenças sócio-econômicas devem ser mínimas num país do Bloco, como é que essa gente janta em restaurantes de luxo com freqüência?

     E os que ficam lá fora debaixo de uma chuva fria que começa a peneirar, e que nem o pão, o agasalho devem abundar em suas casas?

     Ao sair, à porta, vejo a aleijadinha (está todos os dias no mesmo ponto) com algumas flores meio murchas que tenta vender aos passantes. Oferece-me e dou-lhe alguns trocados. Ela força-me a aceitar o buquê, de que só recolho um cravo, por sinal vermelho, tão rubro quanto o símbolo do partido que os domina.

     Ah!... Marx e Engels, e Sr. Drin-Drin (alusão a Lenine que, quando em Capri ganhou a engraçada alcunha de pescadores locais), como vocês lá em cima devem estar arrependidos, embora tenham sido movidos pelo idealismo puro de criar uma sociedade justa e nivelada.

     Descubro uma faceta mais românica nesses romenos que parecem trazer estampado na testa – não somos felizes – ninguém volta para casa sem levar suas flores. Até mesmo os homens sobraçam enormes buquês de crisântemos, rosas, cravos e folhagens e há em cada esquina uma florista que vende a sua mercadoria poética. Nisso eles são idênticos aos russos!

     As ruas são limpas embora as calçadas estejam em estado precário. À porta de algumas mercearias vendem-se em caixa com suporte mas sem tampa, pães, roscas e doces variados, e o enxame de moscas e abelhas de que os alimentos estão repletos, além de expostos à poeira, não me anima a enfrentar a fila para provar um daqueles confeites.

     A organização turística não funciona como na Rússia e uma ida ao Ministério do Turismoconfirma sua deficiência. Adquirir ingressos para o “Romanian Nights”, a ópera, o circo e os demais espetáculos folclóricos envolve uma série de dificuldades e eles alegam que não há problema, que é só pegar um táxi e ir direto. Ora, para se obter uma informação dessas não é necessário recorrer ao serviço oficial de turismo.

     Todos os hotéis da Rússia e dos outros países da “Cortina” reservam para os turistas os melhores lugares para qualquer espetáculo. Por fim consigo ingresso para o Teatrul Rapsodina Rua Lupscani,53, bem perto do magazine UNIREA (enorme, mas não tão grande como o GOUM de Moscou).

     Na volta, problema na condução. A cidade às escuras, as ruas ficando desertas, os turistas americanos, sempre identificados pela indumentária ridícula, tomam logo seus ônibus especiais. Os outros também vão partindo em demanda de seus lares. Só há um meio de transporte, os táxis, mas estes somem nestas horas.

     Vou caminhando na noite escura com um certo receio dos ciganos que poderiam surgir de repente. Mas sei que Deus está comigo e sempre me aparece um “anjo salvador”. Lá está ele, é Vasile, um rapazinho muito educado que fala francês o bastante para me ajudar. Andamos mais de dois quilômetros sem ver um só carro livre. Descemos para uma praça onde há um carro parado e o motorista está do lado de fora discutindo com três negros truculentos que os há aqui, e muitos. Parece que o motorista não quer atendê-los e Vasile o convence a me levar para o Dorobanti Hotel. Fico-lhe muito grato e prometo enviar-lhe um postal do Brasil. Meu “anjo salvador” estuda na capital mas é do interior. Despede-se de mim e some para sempre na noite negra.

     Quanto ao espetáculo que acabo de assistir não tem o mesmo nível artístico de os da União Soviética. Os bailarinos eram feios e capazes de espaventar até o Drácula e as moças mais pareciam trazer no rosto o presságio de um velório, pois dificilmente sorriam, faltando-lhes ainda a graciosidade e a leveza das russas, e nem é preciso ser “expert” em coreografia para atribuir-lhes uma técnica menos apurada.

     As igrejas, todas de rito ortodoxo, ostentam nas paredes apenas ícones e pode-se acender velas como nos templos católico-romanos, porém, elas são da espessura de um lápis e compridas como varinhas. Custam um “leu”, a então moeda nacional que passa a se denominar “lei” no plural e é dividida em “bani”. No cambio oficial 15 lei valiam um dólar, mas no “black” chegavam a 25 ou 30 lei.

     Duas ruas, gêmeas, evocam Paris e o que chama a atenção para elas é a homenagem que prestam a dois patriotas e eruditos franceses, Jules Michelet, o historiador e Edgar Quinet. Ambos seguiram pela mesma trilha idealista e tinham na identidade de espírito as mesmas reivindicações de liberdade.

     As demais ruas e avenidas tem nomes completamente desconhecidos. Suponho que de militares romenos, a julgar pelos inúmeros generais, etc.

     Os paises socialistas ainda cultivavam com muito ardor a arte circense e decidi testar o circo romeno, depois de assistir a todos os dos outros países do bloco. Valia a pena e ali sim, podia-se afirmar que são grandes artistas. Devido à escuridão ao anoitecer, optei pela matinê. Mesmo assim o problema da volta se repetiu e eu fui ficando para trás enquanto o pessoal da casa desaparecia. O local é afastado do centro e há um bom pedaço de chão batido para se desembocar lá embaixo, na auto estrada. Os ônibus e os bondes, impraticáveis, só podem ser usados se se comprar antes bilhetes vendidos em postos que tem a sigla ITT.

     Uma solidão de chumbo pesa no ar e parece que a gente é o único ser vivente na terra nessas horas, tamanho o isolamento num país de língua arrevesada (e ainda dizem ser o romeno parecido com o português).

     Um “anjo salvador” me socorre de novo: encontro Christian, engenheiro de computadores, triste como todos mas de prestimosidade a toda prova. É ele que me leva a pé através de vielas, ruas e avenidas com árvores de ambos os lados que parecem fantasmas gigantes ameaçando se fecharem sobre nós. E assim, caminhando cerca de hora e meia, atingimos o Dorobanti.

     Apesar da atmosfera sombria que paira em tudo por aqui, percebe-se que o povo é culto, um povo que lê muito, o que de fato é comum nas então Republicas Socialistas. Além de inúmeras livrarias, as calçadas ficam atulhadas de balcões com livros em vários idiomas, e em todos os assuntos.

     O escritor mais festejado, Panait Strait, comparece com seus livros, de quem conheço apenas “Mediterrâneo”, considerada uma obra prima universal.


     Mais adiante se defronta com um museu diferente, a céu aberto. Entra-se por um majestoso portão e vai-se desaguar numa Vila construída com todos os tipos de costumes folclóricos do país. Ruas com casas originalíssimas, cada uma representando uma região e uma época. No seu interior encontram-se móveis e também ferramentas peculiares ao tempo e a região em que eram usados.

     Os caminhos são circundados de árvores e flores e os moinhos dão uma nota bucólicavirgiliana, constituindo esta visita ao museu um dos mais belos passeios de Bucareste.

     Mas o que compensou mesmo nesta viagem à Romênia foi abastecer-nos dos decantados cosméticos e medicamentos da Dra. Aslan, aliás, muito baratos, e principalmente visitar os domínios do príncipe Vlad Tepes, mais conhecido como o sinistro Conde Drácula!

No comments:

Post a Comment

Search This Blog

Followers

About Me

My photo
I am one of those guys with a fat address book - maybe because all my friends tell I'm charming and clever! But as far as I´m concerned, friendship is a club of seven people which was fully by the time I was 25. We all share the same interests, and we don´t make any demands on one another in emotional terms - which is something I would avoid like the plague. It´s not that I don´t like making new friends easily...They have to cativate me at first...We all grew up in the same social, professional and geographical world that we now occupy as adults. The group of seven offers me as much security and intimacy as I require!