Saturday 29 January 2011

GREAT AND ASTONISHING...


Nigéria    



     Um carro vem como um bólido patinando pelas poças de lama das ruas do centro e sem que eu possa evitar a tempo, me atira, numa de suas manobras “à brasileira”, uma chuva de barro. Minhas calças azul-marinho tornam-se imediatamente estampadas como o pelo de um jaguar.

É esta a primeira impressão de Lagos. O tráfego um caos e penso que a qualquer momento será um salve-se quem puder da lama nesse labirinto de ruas de terra batida, dos motoristas tão loucos quanto os nossos brasileiros. Eles também correm como se essa fosse a ultima volta do mundo para pegar lugar, quem sabe, na arca de Noé, e se safar do dilúvio...

Ônibus de tamanho comum, pouquíssimos, em compensação, existem às centenas, talvez aos milhares, dessas geringonças, caindo aos pedaços, tipo “peruas”, similares às vistas em Lima e Assunção e que andam abarrotadas como se os passageiros fossem galinhas nos engradados a caminho das panelas futuras.

Em meio à esse transito infernal estão os motoqueiros e ciclistas que se metem nos vãos das calçadas e quando o pedestre salta para fugir aos outros loucos do volante, topa-se pela frente com um deles ziguezagueando à cata de uma brecha por onde possa também esgueirar.

Saio do Brasil para “esfriar” um pouco a cabeça de tantos problemas que assolam o “torrão natal” e venho cair direitinho num deles: exatinho como a balbúrdia do transito de São Paulo ou Rio de Janeiro.


Contraste insólito. Alguns edifícios imponentes confirmam o poderio econômico advindo do petróleo, mas cá embaixo nas ruas (na maioria virgens de asfalto), os esgotos proliferam abertos, paralelos aos passeios, com água estagnada e coalhada de mil gusanos.

Também o que mais se pode esperar desta “pobre” menina rica que somente alguns anos atrás completou maioridade? Precisamente em outubro de 81 fez 21 anos de independência. Pobre menina rica violentada pelos colonizadores e saqueada nas riquezas imensas de sua terra onde o “ouro negro” jazia sempre fértil.

Embora não conhecendo bem a história da Nigéria sabe-se que se compõe de inúmeras tribos com influencias marcantes dos árabes do norte do país. A população é a maior da África e aqui se encontra uma “melange” total de povos primitivos tribais.

No norte dominam os “Hauças”, de cuja tribo descendia o então presidente Shagari. Longilíneos, bastante altos, elegantes e, dizem, muito trabalhadores.

No sul predominam os “Ibos”, cujo biótipo contrasta com o dos Hauças, baixos, troncudos e fortes (o vice-presidente era Ibo).

Já os Yorubás são conhecidos pela alegria... E pela indolência. Preferem nomes ingleses para os descendentes.

Certa vez encontrei no Mercado das Pulgas de Paris uns exemplares de negros de ébano, belos como deuses, de feições delicadas de branco. Acabo sabendo agora em Lagos que esses pertencem à tribo dos Fulanis e constituem povos nômades.

É interessante ressaltar que os Ibos escolhem mais nomes cristãos e judaicos: no próprio hotel, quase todos os garçons se chamavam Jacob, Moisés, Jeremias (Isso ocorre também no Haiti, onde notei a preferência por nomes bíblicos).

A religião oficial é o Islamismo. Hoje, por exemplo, encontrei o comércio todo fechado. É feriado: “Barka da Sallah” dos muçulmanos que celebram o “Eid-el-Kabir” com muita comida, piqueniques e animadas festas. Tal evento tem, porém um significado muito mais profundo que o social e festivo. A essência do sacrifício de animais é uma demonstração de obediência à Allah e a distribuição desses animais abatidos aos mais necessitados enfatiza o espírito de solidariedade comunitária do Islã.

Como no Brasil, mais especificamente no eixo Rio/São Paulo, mendigos os há de toda espécie, aleijados ou não, verdadeiros ou falsos, sempre estendem a mão à espera que lhes deixemos cair pelo menos dez kobo (divisão da Naira, moeda nacional com valor aproximado de U$ 1,60 oscilante).

A vida aqui deve ser o caminho mais curto em direção à morte, a julgar pela precariedade de recursos que a maioria enfrenta – sanitários, econômicos, sociais e educacionais – é o que já observo neste dia e meio de estada.

Entretanto, criança ou meninos de rua, como os que a FUNABEM convencionou de abandonados, não se viu ainda. Crianças, só acompanhadas pelas mães. As que andam e as dependuradas nas sacolas dorsais (os bebês).

Tudo é tão caro que despendo 700 dólares em três dias. E tome água mineral. Já consumi umas 40 garrafinhas, uma vez que não se deve beber água natural aqui, pois há perigo de doenças tropicais, haja vista os esgotos a céu aberto em pleno centro da cidade.

Almoço, jantar, café da manhã resultam em pequenas fortunas em naira. Viver em Lagos só mesmo com o salário do Sr. Oto Glória (Contaram-me que recebe cerca de 25 mil dólares por mês com todas as despesas de hotel pagas). Para que?  O mesmo que o Sr. Glória fazia no Brasil? É preciso tentar um retrospecto de memória. Era treinador de futebol e veio para cá contratado para isto. Fui-lhe apresentado no Hotel onde mora e me pareceu uma pessoa agradável e simpática. Ou a gente tem que dar crédito às profecias daquele remoto francês que chegou até os nossos dias com o sonoro cognome latino de Nostradamus de que o fim dos tempos está chegando, ou a “cultura” dos povos se mede pelos pés, não mais pelo cérebro.

Os escritores do Brasil conseguem viver com o que escrevem? Conheço de perto alguns e afianço que não. A maioria trabalha em funções burocráticas para sobreviver e à exceção de um Jorge Amado e mais uns quatro, todos eles, entre um livro e outro e artigos de jornais, tem dois ou três empregos.

Mas que culpa cabe ao Sr. Glória por sua profissão? Evidentemente nenhuma.

Já deparei com um bando de brasileiros que vivem neste hotel da cadeia dos “Holiday Inn”. São funcionários de empresas paulistas, recebem em dólar com tudo pago e estão “fazendo” a África.

Os negros da Nigéria são simpáticos e educados e neles sobressai a bela dentadura. Procurei informar-me e foi o prestante Jeremias, garçom do restaurante superior, que me prometeu trazer o que ele chamou de “okoy”, uma planta cujas folham utilizam para “escovar” os dentes. 

Pode-se estabelecer um paralelo um tanto esdrúxulo com os negros nigerianos e os do Haiti: são bem semelhantes e as características paradoxais das classes as mesmas. Uns exageradamente ricos outros miseráveis. Enquanto em Port-au-Prince pude assistir a uma sessão de Voodoo, aqui não o permitem ao branco, a não ser com o passar do tempo, quando se ganha a confiança deles, conforme me conta o Dr. Z (de São Paulo) que mora com a mulher há dois anos na Nigéria e só agora puderam ver o culto dos Yorubás.

Leonardo é um paraense, mas veio de São Paulo, procedente de uma dessas grandes empresas para “fazer” também a África, como antigamente faziam a América; Viu-me ontem chegando para o jantar e convidou-me para um drinque junto à piscina, ao lado de seu motorista nigeriano, é claro. Mais tarde insistiu para que eu jantasse com ele e lá fomos à procura de uma mesa bem situada. Leonardo é extrovertido, agradável e parece conhecer todo mundo. Veio o cardápio, quis experimentar um frango “piri-piri” à nigeriana cujo tempero era divino. Escolhi depois um “Tokai”, um vinho húngaro meu velho conhecido desde as páginas de Eça.

Em meio à refeição acercou-se de Leonardo o Jeremias, que trazia a nota para que assinasse. Ele parecia já ter bebido além da conta naquele dia. Com gestos bruscos, recusou-se a assinar, alegando que não havíamos terminado; o que era verdade. O garçom insistia enquanto Leonardo ia ficando excitado e vermelho, e da excitação passou ao descontrole total.

Foi aí que meu compatriota chamou Jeremias de “bastardo”, ofensa de fato demasiado pesada, especialmente para um negro altivo e orgulhoso. Da discussão não nasceu a luz, nasceu foi um terremoto em forma de quase duelo. Eu me interpus entre os dois, puxei Leonardo pelo braço, porém ele não me viu nem ouviu, seria privação dos sentidos?

Uma cadeira foi arremessada ou tombada, não me lembro bem e a “coisa” estava para chegar às vias de fato. Aproximei-me de Jeremias que a essa altura já estava rodeado de colegas, além do Maítre, e pedi-lhe com jeitinho que se acalmasse porque talvez Leonardo tivesse abusado um pouquinho das doses. Jeremias relutava e embora me atendesse educadamente, continuava martelando: “Senhor, ele me chamou de bastardo, eu não posso aceitar isso”.

Saímos todos, puxei Leonardo com uma força que a mim mesmo me surpreendeu e ele me seguiu como autômato. Os outros levaram Jeremias para um canto do salão. Dali à pouco ele já parecia reentrado na sua individualidade normal e ainda tentou trocar idéias sobre nossas andanças pelo mundo, mas notei-lhe indícios de nova tempestade.

Resultado, entreguei Leonardo aos outros amigos com quem foi beber de novo no bar da piscina. Se eu estivesse no Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro, teria corrido umas mil léguas de distancia da “bagarre”. Mas na África, embora com brasileiros de permeio, “agüentei” a barra e senti-me mais seguro entre aqueles negros desconhecidos.

Não é lamentável e doloroso até que eu me sinta muito mais seguro entre os negros tribais que com meu próprio povo?

Voltando às ruas de Lagos, o que se vê de exótico, principalmente, são as nativas nas suas vestimentas típicas de bordado inglês autentico e enormes toucados do mesmo tecido, enquanto os homens usam túnicas estampadas ou rendadas.


Os camelôs endoidam a gente e pululam entre os carros com as mãos locupletadas de relógios, cordões, anéis, utensílios domésticos, toalhas, panos coloridos e um punhado de quinquilharias pelo que pedem cinco vezes mais para esperar que os turistas regateiem (o que é comum no mundo inteiro). Há tabuleiros como os de nossas baianas, com uns bolinhos que não me animei a experimentar e assim fiquei sem saber se são idênticos aos delas.

A um pedido de informação nas ruas não há quem não se decida a acompanhar a gente ao local desejado, sempre sorridentes e... Sem receber gorjetas.

E os assaltos? Dizem que os há também, mas só a noite e em locais muito desertos. Aventurei-me até por algumas “bibocas” tipo favelas de ruas enlameadas, com muita cor local e, graças a Deus, ninguém sequer esbarrou-me. Teria eu passado por alguma zona perigosa? Sei lá, o que sei é que ao por os pés fora de meu país, seja lá para onde for me sinto muito mais corajoso.

Os caracteres biotipológicos do nigeriano não diferem muito dos angolanos, ou os do Quênia, ou mesmo os do Haiti do lado de cá. Observo este lindo povo de raça negra não com os “olhos vazios de humanidade” no dizer do poeta inglês, mas com compaixão e simpatia, lembrando que eles no decorrer dos tempos tem sido esbulhados (privados de posse por fraude ou violência), despojados do que lhes pertence, dessa força telúrica que lhes está impregnada na alma e no ser. Que de saudades devem conservar no coração dolorido, das suas aldeolas, das suas lavouras, seus animais, suas danças e cantos rituais, pois todas estas coisas ficaram para trás, para além da realidade atual: a triste rotina de servir os magnatas, esses “big shots”, doublés de máquinas e que vendem máquinas, esses sim, “vazios de humanidade”.

Todos esses serviçais de hotel de luxo devem morar agora não nas suas cubatas (choça formada de folhas), quando outrora acordavam ouvindo o mugir do gado no pasto, mas a muitos quilômetros de Vitoria Island (onde se localiza o hotel), na dependência de um daqueles transportes precários que tenho visto e que disputam como numa briga de foice.

Ainda hoje no centro da Marina (um dos principais portos de Lagos), tive ocasião de ver um negrinho a correr como um desesperado para agarrar, este é o bom termo, uma ponta da porta do veículo que ousam chamar de ônibus e seguir para seu destino, sabe-se lá Deus para onde. Estava de sandálias havaianas e na correria elas caíram (as duas) rente aos meus pés bem calçados e prontos para me encaminhar a um ponto de táxi de volta ao hotel.

Confesso. Tive vergonha de ser o turista vagabundeando por esse mundo afora atacado de oniomania (desejo mórbido de fazer compras, adquirir coisas) como sempre, e de saber que aqueles outros infelizes que vi dependurados nos calhambeques talvez não ganhassem por mês o que gastei num dia nesta terra surpreendente que eu chamo de “pobre menina rica”.

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I am one of those guys with a fat address book - maybe because all my friends tell I'm charming and clever! But as far as I´m concerned, friendship is a club of seven people which was fully by the time I was 25. We all share the same interests, and we don´t make any demands on one another in emotional terms - which is something I would avoid like the plague. It´s not that I don´t like making new friends easily...They have to cativate me at first...We all grew up in the same social, professional and geographical world that we now occupy as adults. The group of seven offers me as much security and intimacy as I require!