Monday 18 January 2010

Álbum de família II - A caçada...


Tio Eufrásio, irmão do meu bisavô paterno, conforme depoimento de minha avó, devia ser o oposto deste não só pelos haveres, como pelo temperamento. O velho Eufrásio era rico e possuía elevado número de escravos. Dizem que bonito, claro de olhos acinzentados, estatura máscula, ostentava um porte de grande senhor. Enérgico, temperamental até, costumava castigar os faltosos com a eficácia do seu chicote, no mais, um amigo sincero e um caráter incorruptível. Numa época em que só se falava o idioma de Racine, eles trocavam correspondência em Francês.
Vovó falava de tio Frasinho com admiração e respeito. Meu avô de vez em quando embarcava no então Presídio (assim se chamava a velha cidade) para ver o irmão em Altos. Na verdade, não só a saudade o levava a visitar o único irmão vivo, mas também as caçadas. Ambos praticavam o esporte dos reis e isto constituía tradição na família desde a mais remota geração. Cilindra, Leão e Romana, perdigueiros com faro apuradíssimo os acompanhavam nas excursões e a volta era aquele festim: codornas, torcazes, jaós, nhandus e em certas épocas do ano, as deliciosas perdizes. Onças, desde as jaguatiricas até as temíveis canguçu, excitavam-os para as aventuras venatórias e respeitantes à caça. Meu avô, na  époça um menino de uns dez anos, os seguia mato adentro, sem medo das caninanas ou das gigantescas aranhas que teciam teias tão espessas como arame. Os guias (na verdade escravos do Tio Eufrásio) seguia à frente, com facão de mato para abrir as picadas e também para desmantelar as “rendas” das laboriosas artesãs. Tais monstrinhos deslizavam raivosos pelos ramos, em busca de outras “tendas” onde montar labirintos.
Às vezes pernoitavam na mata para a caça grossa, geralmente mais acessível à noite. Os veados galheiros, por exemplo, bem tarde desciam já lentos e despreocupados à procura de água, deixando a descoberto as esgalças figuras. Cada qual esperava então o seu momento e oculto pelas sombras, mimetizando-se nas roupas semelhantes a galhos de plantas, detonavam as armas. É crença vulgar que caçador (ou pescador) mente por natureza, mas sem querer defender meus ancestrais que não cheguei sequer a conhecer, afirmo com convicção que não mentiam nunca. Faço questão da ressalva antecipada pelo sucedido que passo a relatar e que por não entrar na rol de histórias de caçadas, poderia suscitar dúvidas quanto à autenticidade da narrativas. Não estou certo, mas meu bisavô e seu irmão não eram homens de contar bazófias. Meu bisa, como de costume, passava uma temporada na fazenda de Tio Frasinho. OS fazendeiros e amigos das imediações ocorriam todos quando sabiam da sua chegada, pois teriam na certa boas caçadas com o maior entusiasta deles. Desta vez o Coronel Juca vinha pedir o seu concurso para liquidar uma onça que já estava se tornando lendária: ninguém conseguira localizar ainda a sua toca. Diziam que era preta e os que a avistaram chegavam a lhe dar uns dez palmos do focinho à cauda. Convenhamos, era onça para diabo. Já devorara meio rebanho da vizinhança e devastava com certeza com a caça fina. Qualquer dia poderia pegar uma criança ou até mesmo um homem, quem sabe.
Combinaram um sábado para liquidar a bichona. Usariam o mesmo método de sempre, isto é, ficariam espalhados, cada qual para uma pista, de assobio a tiracolo, para o sinal de encontro depois. Bisa levou a inseparável Cilindra e com aquela fleuma que lhe era peculiar, tomou por uma trilha, distanciando-se logo. Cilindra seguia cautelosa, de orelhas em pé, sentidos alerta, quase em posição de ataque e por instinto  sabia que a aventura seria das mais perigosas. Esta cadela viera da Inglaterra junto com um revólver, como presente de um amigo que voltara à pátria mãe e Bisa incorporara ao clã da família, tamanha a estima que lhe tinha.  Em dado momento ela atacou e virando-se para o dono, começou a “chorar” na linguagem inequívoca do faro. Levantara  as pegadas da fera que devia morar por perto. Cilindra nunca havia falhado. Examinou bem ao redor e resolveu ficar por ali. Descobriu um oco enorme de tronco secular e que nem sabia onde ia terminar, tamanho o emaranhado de pedras, galhos, outras árvores e arbustos pegados. Cabiam folgados dois homens com as malotagens, se permanecessem acocorados. Entrou para o toco disposto a tocaiar dali a onça. Caia a noite e a mata começava a adquirir um ar sonolento com os galhos pendendo ao sereno do orvalho. Quem nunca se deteve numa floresta fechada em noite pura, sozinho, entregue às elucubrações não, pdoerá avaliar a sensação de paz que envolve o ser nestes instantes.
O avô, home culto e estudioso, pertencia ao tipo panteísta, para quem somente Deus é real, que viveria para sempre segregado da civilização, não fora a família, vendo portanto ali o seu legítimo “habitat” . Calmo, sempre tranqüilo de consciência, numa “mata virgem” , esquecia-se dos demais e deixava o espírito à solta, em comunhão perfeita com a natureza que ele amava. Cilindra permanecia em silêncio, abaixadinha no oco, a seus pés. E o bisa, a essa altura já havia até esquecido de onças e outros bichos, embora a famosa “trochada de aço damasco” estivesse sempre rente.
Apanhou um cigarro enrolado, riscou a pedra no isqueiro primitivo e escancarou a janela das circunvoluções cerebrais, quando o pensamento voou célere. Não tardou, entretanto, que fosse despertado de suas sérias reflexões de uma maneira assaz desconcertante: abriu os olhos e junto do seu rosto, quase a lhe fazer cócegas com imensas barbas, uma cara cresceu medonha.Sabe-se que soltou um grito que fez a onça fugir em desabalada carreira pela mata, mas ele próprio não ouviu, tamanho foi o susto. Aquele oco era a “habitação” da fera. Foi este o primeiro e único fracasso da sua vida de caçador diletante.
Meu pai nos falava de seus mortos queridos, relembrando os tempos de sua meninice contente e sem problemas como os de hoje, e das histórias que ouvia contar. Ficávamos horas na sala de jantar numa meia penumbra, no doce aconchego do ambiente próprio às confidências. Foi numa noite assim, talvez Junho (não me recordo mais), o frio estourava os lábios da gente e comprávamos manteiga de cacau na farmácia do “Seu” Barbosa. Não se saia de casa, quase, e um circo mambembe que chegara, coitado, tinha os artistas à fome. Numa noite dessas recebemos a visita de um novo personagem no cenário da nossa família. Guardo uma vaga idéia daquele tio distante que nunca vira antes.Sei só que o vozeirão alegre enchia de calor a nossa sala e que sua mão enorme apertou com firmeza a minha pequenina. Mais alto que meu pai, pareceu-me igualmente muito mais corpulento. Com que então, que tio era esse com o nome de Leôncio e ares de “bom vivant”? E o era, sem dúvida. Ou melhor, fora, nos tempos de rapazola. Bisneto do saudoso tio Eufrásio, desbaratara quase a fortuna do velho em façanhas estupendas nos tempos de estudante na capital federal. Contava-se até a lendária história de uma ilha em que o moço estróina aportou e em vez que queimar pestanas nos livros, para lá levava as francesinhas da época, apanhadas pelos cafés boêmios. Uma ilha inteira, imaginem, só para ele e seus colegas de bacanal. Os anos passaram, o tio se fora, deixando-me, de certa forma, um vácuo imprescindível de sua espetacular presença.
Sou agora um anônimo na multidão dessa cidade tentacular, mas por incrível que pareça, não esqueço os “fantasmas” da minha infância quês e centralizava nos pais, avós e suas histórias – meus ídolos da vida inteira. Soube outro dia que o dito primo jaz em tumba colossal, na ainda e para sempre magnífica São Sebastião do Rio de Janeiro, cidade que coroou suas loucuras.
Como estará ele na outra vida? Como será agora? O que restará daquele estudante boêmio que sabia viver e muito bem aproveitar os momentos fugazes que uma existência encerra?


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I am one of those guys with a fat address book - maybe because all my friends tell I'm charming and clever! But as far as I´m concerned, friendship is a club of seven people which was fully by the time I was 25. We all share the same interests, and we don´t make any demands on one another in emotional terms - which is something I would avoid like the plague. It´s not that I don´t like making new friends easily...They have to cativate me at first...We all grew up in the same social, professional and geographical world that we now occupy as adults. The group of seven offers me as much security and intimacy as I require!