Monday 18 January 2010

Álbum de Família III - A Excomunhão!




Meu avô passava por grande contador de histórias. Homem inteligente, autodidata e anticlerical por excelência, sempre arranjava um motivo para incluir nos seus “casos” um personagem de sotaina, um usuário de batina. Isto se dera na sua terra, lá para os lado do Crato, nos seus  tempos de rapazinho. O sertão sempre fora palco de histórias esdrúxulas em que à vezes o trágico andava de par com o ridículo. Lugar pequeno, mentes retrógadas, onde se sobressaiam apenas uns poucos elementos mais esclarecidos, tal era a cidadezinha do meu avô no começo do século passado. Única diversão: missa aos domingos, animada pela banda local, cognominada a “Furiosa” devido a alguns músicos tão desafinados que espantavam os ouvidos delicados dos que privavam e tinham intimidade com Euterpe, a deusa da música e da poesia lírica. A banda fazia retreta no coreto da praça bem em frente à matriz e só silenciava no início da santa missa. O movimento crescia quando os fazendeiros e suas famílias se dirigiam ao povoado em suas charretes. Os empreiteiros vinham também nos seus cavalos a galope e faziam grande alarido ao espicaçar as montarias. Apeavam todos e as amarravam nas pilastras, acorrendo céleres ao chamado da religião. Isso quer dizer que ainda temiam “os castigos de Deus” e as “fogueiras de satanás” , argumentos poderosos que o padre Caetano usava para catequizar e aterrorizar a turba ignara. Só Tertuliano Bento não ia nessa conversa e fazia parte dos poucos “não tementes”, chegando mesmo a ser um rematado ateu. D. Filó, sua esposa, tentava salvar aquela situação sacrílega, confessando e comungando diariamente, além de concorrer para as “obras” eternas da igreja. Tantas fez o fazendeiro, tanto blafesmou contra os santos mandamentos que não houve súplica da piedosa mulher que conseguisse demover o padre da ameaça que fizera. O motivo, porém, era bem outro: o que ele estava  era danado porque os outros davam polpudas esmolas e o Tertuliano, afora o dinheirinho que  D. Filó conseguia surrupiar-lhe para as “obras”, jamais dera um tostão. Os beatos e beatas, terríveis sicofantas, mentirosos de marca maior, ajudavam a colocar mais lenha na fogueira e iam contar ao padre, deturpando sempre, os horrores que o Tertuliano andava dizendo. Estava decidido: excomunhão!
A essa época o fazendeiro andava a beira da falência e os negócios iam todos por água abaixo. A piedosa D, Filó atribuía essas desgraças à sua apostasia e ao abandono da fé. Na missa de domingo, a das dez que era quando o povo afluía em maior número, o sacerdote subiu ao púlpito para mais uma vez execrar o procedimento de Tertuliano Bento, participando a todos os fiéis, a partir daquele momento estava excomungado de acordo com os cânones da Santa Madre Igreja. Horrorizados, os beatos começaram por fugir até ao cumprimento do homem amaldiçoado. Se ele entrava num bar e pedia café, os presentes iam saindo de fininho, temerosos de se contaminarem agora ao contato com o embaixador do inferno. Até a esposa recusava-se já a dormir com o renegado e recolhendo as roupas, passara a repousar no quartinho dos fundos, o mais distante da casa. Aspergia constantemente a sala de jantar e os outros cômodos por onde passava o marido e se benzia apavorada na sua presença.
Diante de tamanha desdita não havia outra alternativa senão mudar da cidadezinha onde todos o tratavam como a um cão raivoso. Liquidou, pois suas últimas dívidas, ficou limpo e partiu de cabeça erguida. A esposa não o acompanhara, o que para ele não representava grande perda, uma vez que a mulher não lhe atendia mais as necessidades do sexo e nem ao menos lhe preparava comida, além disso, era mesmo uma “baranga”. Que ficasse lá com o padre e o beatério.
Como o mundo dá muitas voltas, para usar de um lugar comum, o nosso Tertuliano Bento foi se estabelecer em outras plagas, lá para os lados do Piauí, onde não soubessem do caso da excomunhão. A força do clero ainda dominava aquele pequeno universo, embora não houvesse mais inquisição. Sujeito esperto, honesto e corajoso, não se deixou abater e recomeçou tudo da estaca zero. Aos poucos foi se aprumando e dali a alguns anos voltou a ser o fazendeiro mais próspero da cidade onde aportara. Os anos se sucederam, até mulher nova e bonita ele arranjara e, benquisto por todos, comparecia a festas e tudo quanto era cerimônia para as quais sempre recebia convites. Foi num desses rega-bofes que ele se deparou com o antigo pároco e que não se sabia como, fora àquela festa. O padre não reconhecera aquele senhor grisalho e imponente, a sua antiga vítima, ao passo que Tertuliano Bento o reconhecera de pronto. Após os comes e bebes foram para o varandão da fazenda gozar a doçura da tarde de outono. Tertuliano bento tornara-se o centro das atenções: a safra do ano lhe rendera mais alguns milhares de contos de réis. Sultão, o animal de estimação que o acompanhava por toda parte, dormitava a seus pés: único senão na calmaria de vida que ele tinha agora, pois o cão, apesar de belo exemplar de perdigueiro, não engordava, por mais cuidados e tratos especiais que o dono lhe prodigalizava. Estava que era pele e osso.
Tertuliano bento teve então uma daquelas irreverentes idéias que lhe assomavam ao cérebro como antigamente. Ia tirar uma desforra do padre que o excomungara. Dirigindo-se a ele, lembrou-o da excomunhão que lhe impusera há tantos anos. O padre, desapontado diante daquela gente toda que poderia lhe render boas espórtulas, gordas esmolas, quis desconversar, porém o fazendeiro insistiu, acabando por lhe dizer: “Padre, depois que o senhor me excomungou, minha vida melhorou, como vê, e hoje sou um homem feliz e de grandes haveres.Queria, por isso, lhe pedir um grande favor...Sabe o que desejo?” E continuou, para pasmo do velho sacerdote: “Quero que me excomungue também este cachorro, é um animal de muita estimação, mas não engorda de jeito nenhum”.
Todo mundo caiu na gargalhada e o padre, que tencionava arrancar os donativos dos opulentos proprietários, não teve outro remédio senão imitar os outros: começou a “sorrir amarelo” e todos acabaram na maior pandega. Agora, se o cachorro foi “excomungado” é que não sei, porque isto meu avô não me contou...


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I am one of those guys with a fat address book - maybe because all my friends tell I'm charming and clever! But as far as I´m concerned, friendship is a club of seven people which was fully by the time I was 25. We all share the same interests, and we don´t make any demands on one another in emotional terms - which is something I would avoid like the plague. It´s not that I don´t like making new friends easily...They have to cativate me at first...We all grew up in the same social, professional and geographical world that we now occupy as adults. The group of seven offers me as much security and intimacy as I require!