Sunday 17 January 2010

Álbum de família I - Um retrato...


Na galeria dos homens notáveis no nordeste do Brasil do segundo reinado, ressalte-se a figura veneranda do Visconde Figueira Paiva. Senhor de grandes posses e muitos escravos (libertou-os todos antes da lei magnânima) era, no entanto, o oposto dos despóticos senhores feudais da época. Tido como santo, quase, realmente o era na imaginação acanhada, mas reconhecida dos seus servos, o visconde a todos estendia a mão de dar, a mão de espalhar bondades. Homem progressista, de larga visão construtiva, fez da Pádua que o acolhera uma cidade promissora. De sua contribuição ao bem público contam-se escolas, sede nova da penitenciária, prédio da câmara municipal e muitos outros. Embora português daquela leva de aventureiros que aqui aportaram com os olhos ávidos no nosso ouro e a mente prenhe de lendas fabulosas em torno de nossas riquezas pertencia aos de boa cepa, e, se amealhou fortuna, foi também um benemérito. Nas férias escolares, que invariavelmente passava com vovó, ouvia-a falar sempre do visconde e da sua morte trágica, advinda de sua bondade. Gostava de, ele próprio, distribuir biscoitos aos negrinhos da fazenda e, um dia, como de costume, meteu a mão na barrica para distribuição. A luz baça do lampião não lhe permitiu ver o que lhe picara ligeiramente a mão. Com certeza algum prego enferrujado pronto para ferir carne inocente. Não ligou para a gota de sangue que continuava pingando do dedo mínimo. Dali a instantes, apesar das providências caseiras até que se buscasse médico na cidade, foi piorando  e expirou em questão de minutos. Ninguém atinou com o estranho caso. Um prego enferrujado que fosse, poderia matar uma pessoa tão rapidamente? Certamente que não. Uma série de sintomas iria se agravando gradativamente e o processo inflamatório evoluiria para uma infecção até atingir o clímax da gangrena. Mas para tanto levava tempo, dias, um mês, quem sabe? Mistério. Vindita? Envenenamento proposital? Mas quem tentaria eliminar o visconde se ele não possuía inimigo e todos o amavam? Política? Até os mais ferrenhos adversários o respeitavam e admiravam a sobriedade com quem defendia suas idéias. Que fora envenenado não restava dúvida, mas como, e por quem? Após o violento impacto da morte do visconde, a vida na fazenda foi aos poucos voltando ao ritmo normal de trabalho, embora sempre chorassem o bom amo.
A viscondessa, uma francesa de passado meio duvidoso mas boa alma continuou a tarefa do marido, tendo herdado uma fortuna incalculável. A barrica de biscoitos já não era tão procurada para engabelar a fome dos negrinhos. Uma tarde alguém retornara ao quarto onde ela se encontrava.  E estava decifrado o enigma da morte do visconde: uma jararaca minúscula dormia enrodilhada no fundo, em meio aos biscoitos. Então, o bisavô da minha avó, o visconde Figueira Paiva de quem ninguém tivera queixas jamais, tem hoje nesse seu descendente uma pequena mágoa que o faz culpá-lo por um único ato de punição de toda a sua vida. Deserdara o filho mais novo, pai do pai do pai da minha bisavó e considerado a ovelha negra da família. Estróina autêntico, mas no fundo bom moço. Não fora tal cirscuntância de seu gesto, talvez eu fosse hoje um soleníssimo senhor de milhões e pratarias de Bonifácio Figueira Paiva, visconde bastante agraciado e distinguido no reino, a julgar pelos retratos onde as condecorações brigam para ocupar o peito largo.
Cheguei à conclusão sem dúvida um tanto amarga de que não nasci mesmo para a riqueza e foi melhor assim, pois talvez a essa altura estivesse  abominando e maldizendo os milhões que sobrariam na minha conta mas me confeririam por certo maior insegurança, a saber que em mim reverenciariam o ouro que a minha pessoa representaria e nunca, a mim mesmo, criatura humana sedenta de afeto e paz e eterno desencantado do gênero humano. Agora, compreendo, sim, e faz sentido, aquelas maneiras protocolares e cerimoniosas da minha avó e que resvalam até hoje em meus pais e irmãos, que ela sabia impor aos vizinhos, apesar do trato sempre afável. Descendia de fidalgos e o sangue que lhe corria nas veias transmitiu-lhe até o último suspiro, sem que percebesse, aquele porte altivo.
Mas cá para mim, pouco se me dá que eu tenha um ancestral coalhado de crachás e honrarias. Prefiro ainda a ovelha negra do meu antepassado que acabou seus dias romanticamente na ponta de um punhal!


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I am one of those guys with a fat address book - maybe because all my friends tell I'm charming and clever! But as far as I´m concerned, friendship is a club of seven people which was fully by the time I was 25. We all share the same interests, and we don´t make any demands on one another in emotional terms - which is something I would avoid like the plague. It´s not that I don´t like making new friends easily...They have to cativate me at first...We all grew up in the same social, professional and geographical world that we now occupy as adults. The group of seven offers me as much security and intimacy as I require!