Friday 15 January 2010

O mago do cemitério!



Continuava minha vigília e meditação no túmulo de Kardec, mas de repente despenco assustadoramente na concreta realidade da sonata individual de um violino e uma fria mão que me tocava o ombro: um velho baixo, atarracado, de olhar vítreo, pára de tocar e se dirige a mim. O temor de estar diante de um fantasma me paralisa a ação e as pernas tremem. Ele me aperta as mãos e se oferece para curar-me de uma dor aguda no tornozelo esquerdo (talvez pelas muitas caminhadas) que vinha me atormentando há tempos (e isto era verdade). A esta altura já estava em pânico, quase sozinho naquele campo santo, com um desconhecido para lá de bizzaro. Poderiam os mortos me defender de uma possível agressão? No ar só se escutava o pipilar dos passarinhos na ramaria. O “Pére Lachaise” fica num bosque fechado de árvores enormes envolvendo flores e túmulos. É verdade que o homem é um ancião, mas mesmo assim, a sua aparência fantasmagórica me metia medo. Para disfarçar, pergunto-lhe o nome: Levy Michel, sobrenome bastante vulgar para os judeus. De onde surgira tal criatura sem que eu percebesse sequer o ruído de seus passos nas folhas secas do parque? E a sua música que se fez presente apenas no meu momento de transe? Seria uma “visagem”? Fantasmas não apertam as mãos das pessoas e pelo seu “shake-hands” percebi que ele tinha ainda bastante vigor físico. E se for ladrão ou “isca” de ladrão? Onde foram parar minha fé e coragem tantas vezes comprovadas solitariamente nos caminhos do mundo? O velho retira do bolso alguma coisa (meu Deus, será um revólver?). Reconheci logo o objeto. Era uma “chadai” de aço, o que veio conformar minha suposição de início quanto ao sobrenome judaico. Aplica a enorme estrela de David na minha testa e murmura palavras cabalísticas, assim o creio, onde só conseguí perceber a hebraica “Adonai” (Senhor). Em seguida desloca a estrela, sempre a sustentando com força, para meu abdômen, e de novo se põe a resmungar em hebraico. A lengalenga era interminável, o que fez recrusceder o medo de me ver a sós com esse ser misterioso naquele universo de mortos. Por fim, mandou-me dar uma corridinha, livre da mochila e de uma sacola de compras que carregava. Como? Deixar meus pertences ao alcance de suas mãos? O olhar do homem era magnético e não resisití, caminhando de mãos vazias, mas com o olhar enviesado para os objetos deixados no mausoléu. “Vá e volte correndo ainda uma vez!”, ordena o “mago” e eu obedeci como um autômato, teleguiado, sabe lá o quê. A agonia pareceu-me, ia terminar, pois ele murmurou firme como um oráculo: “Vous êtes guérie” (você está curado). Num fiozinho de voz pergunto-lhe quanto lhe devia e ele responde que absolutamente nada. Despedi-me bastante atordoado da estranha criatura e atravesso as alamedas da necrópole sem deter-me um minuto a mais no túmulo de Kardec. Verdade seja dita, sei curtir como ninguém os encantos de Paris, mesmo sem muito dinheiro ou luxo...Estava vivo, bem vivo e depois desta insólita tarde de aventuras, hora de tomar uma injeção reanimadora: um “beaujolais” é a receita infalível. Entrei no primeiro barzinho que avistei e pedi um, dois, até três copos do precioso néctar. Ao fundo do barzinho havia um espelho embaciado e adivinhem quem eu vi refletido nele? Michel Levy, o velho do cemitério, que também tomava sua dose. Ele pareceu não me reconhecer e ali, em campo aberto, já não me amedrontava. Aproximei-me e paguei-lhe uns tragos. Ele agradeceu, olhou no fundo dos meus olhos e profetizou: “Monsieur, algo muito especial está para acontecer, e vai revolucionar sua vida” . Sem esperar pela minha reação, ele pegou o velho violino e se foi para sempre! O vinho aquecera-me a alma e transmitira-me uma euforia natural, e logo depois julguei que tudo não passou de uma das minhas fantasias. Mas tarde, já no albergue, remexendo a velha mochila para guardar o troco, encontrei um papelzinho que trago comigo até os dias de hoje, meio amarrotado, por sinal, onde leio: Levy Joseph, 9 Rue François Villon Gennevilliers, 92. Mas o homem não se chamava Michel Levy? Ali estava o endereço que me dera, portanto era um ser humano, não produto da minha fértil imaginação, e como todo bom francês, degustava o seu vinho diário. Atribuí a troca de nome à minha perturbação decorrente do terror que sentira.

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I am one of those guys with a fat address book - maybe because all my friends tell I'm charming and clever! But as far as I´m concerned, friendship is a club of seven people which was fully by the time I was 25. We all share the same interests, and we don´t make any demands on one another in emotional terms - which is something I would avoid like the plague. It´s not that I don´t like making new friends easily...They have to cativate me at first...We all grew up in the same social, professional and geographical world that we now occupy as adults. The group of seven offers me as much security and intimacy as I require!