Sunday 17 January 2010

Um Rei?

 cat-lentes de contato com os olhos - vampiro - Burning Man 2008
Dodô parecia ter os olhos de fogo. Nos meus três ou quatro anos era assim que o via: uma cara de tição onde crepitavam duas brasas vivas – as esclerótides de seus olhos. O medo que me inspirava talvez fosse pelo quê misterioso que contavam dele. Dijé, nossa agregada, moça feita  a quem mamãe me confiava às vezes, muito contribuía para aumentar o meu terror por Dodô. Ela dizia que o negro, feiticeiro, às sextas feiras ia ao cemitério desenterrar esqueletos de “anjinhos” , que utilizava no seu “canjerê”. De fato, naquelas noites valpúrgicas os tambores não cessavam até o amanhecer lá no Filipinho, é o que se sabia na cidade. Filipinho era o lugar onde pontificava o Dodô. Por que “Filipinho”? Há muito tempo o turco Filipinho montara uma tendinha que depois foi crescendo até se tornar uma boa “venda” (venda era a designação antiga para loja ou mesmo armazém na cidadezinha). Como o negócio era uma espécie de referência para os que iam para aquelas bandas, o nome do turco incorporou-se ao lugar e todo mundo passou a responder a quem perguntava: onde fica a casa de fulano ou a rua tal? “Lá no Filipinho”, e creio mesmo até os dias de hoje lá é o “Filipinho”. Segundo informações a mim passadas por vovó, a venda tinha de um tudo: linha, agulha, pó de arroz “Lady” (acho que era o único, ou então o mais famoso), querosene para lamparina, lingüiça, arroz, feijão, cachaça, não faltando nem o “fumo de rolo”, além toda leva de cigarros industrializados. Sei disso porque meu velho pai, fumante inveterado desde os 14 anos, colecionava carteiras vazias de cigarro, das quais me lembro Yolanda, Cassino, Liberty, Minister, Hollywood. Sabedores desse hábito, era comum meninos e meninas apanharem maços vazios nas ruas e trazê-los para a peculiar coleção, como também o fiz, comprando cigarros mundo a fora para tão similar passatempo. Peguei essa mania do prima Margareth, bem mais taluda do que eu e que não saía lá de casa para brincar comigo e me pegar peças também, como as das “balas de sabão”  que ela embrulhava em papel de seda e me dava. Descobrindo o logro ao abri-las eu botava a boca no mundo e lá vinha Dijé para enxotar a menina e lhe passar descomposturas... Mas eu falava de Dodô, o feiticeiro dos olhos de fogo. Via-o diariamente porque ele passava pela minha porta a caminho de não sei onde, quem sabe para ir ao cemitério exumar os “anjinhos”... Criança é muito impressionável e desde pequenino o sobrenatural exercia um grande fascínio em mim que acrescia mais e mais com as histórias de assombração que Dijé e os outros adultos me contavam. Ficava horas matutando o que seria aquele “feitiço” que atribuíam ao negro Dodô. Depois do banho tomado, era-me permitido ficar no portão da casa, mas sem arredar um passo fora. Morria de curiosidade quando via o negro passar e tinha muita vontade de falar-lhe, mas aquela cara medonha e aqueles olhos injetados davam á sua aparência qualquer coisa de demoníaco e metia medo em todo mundo. Eu soube ser ele “Rei dos Congados”  e todos os anos, no 13 de Maio, ele arrebanhava seu povo e saía à frente de outros tantos vestidos a caráter: cetim de cores berrantes, espelhinhos colados nas capas, capacetes adornados igualmente de espelhos e fitas coloridas, muita lantejoula e espadas de latão compunham o traje típico dos dançarinos. Para quem não sabe, o Congado é uma dança folclórica que representa a coração de um rei do Congo. Eles saltam, simulam lutas de esgrima onde as espadas brilham ao sol estalando a lataria, dando gritos selvagens dentro do seu canto nagô. São ainda resquícios do tempo da escravatura e o nosso folclore mantém ainda essa tradição em diversas cidades do interior do nordeste. Quem ensaiava ou inventava, sei lá, as coreografias, era o próprio Dodô, que escolhia as cores e os enfeites de cada membro e podia ser considerado o “Joãozinho Trinta” do pedaço. O espetáculo (que vi e revi somente na adolescência) agradava não só pela beleza e luxo do vestuário como pelas danças bárbaras. Era assim que se comemorava o 13 de Maio, com muita pompa e num clima para lá de eufórico. Ao término de cada “sessão”, um deles ia pela multidão “platéia” com uma bandeja na mão e um estandarte na outra, a recolher esmolas para o santo padroeiro. O estandarte uma efígie de São Benedito  de onde pendiam muitas fitas que os fiéis beijavam contritos. A bandeja, claro, ficava logo repleta e os acólitos iam passando o dinheiro para uma sacola. Depois, tornavam a correr o prato vazio, sucessivamente, até que partiam para outros pontos da cidade. O “clou” , atrativo principal da festança, acontecia à noite: Dodô com sua sanfona de oito baixos armava o “calango” e a cachaça rolava dos tonéis que ele ganhava dos fazendeiros da região. A maioria dos participantes trabalhava em pequenos sítios e fazendas locais, onde ainda havia plantações, entre a subsistência arroz, feijão e milho, umas réstias de algodão e cana de açúcar. Eu soube que no outro dia pos festejos, os patrões não poderiam contar com a turma que permanecera a noite inteira na folia. Quem passasse pela estrada das imediações veria, de espaço a espaço, dois, três e até mais bêbados caídos dormindo a sono solto. Dizem que no terreiro de Dodô, lá pela meia noite, o ambiente começava a ficar pesado e escurecido de nuvens de enxofre que denunciavam a presença de “Belzebu”  transfigurado num enorme bode preto. Os que freqüentava contavam horrores dessas noites fantásticas. Ouvia tudo isso dos adultos que comentavam os fatos sem perceberem que eu estava sempre por perto. Figura excêntrica que povoou minha meninice de imaginação fértil e ainda hoje, decorridos tantos anos, rememoro. Dodô, um rei cuja aura mefistofélica me amedrontava e tantas vezes me acordou em pesadelos fantasmagóricos,  mas com igual teor, me arrebatava.

(Passeando pela Lagoa Rodrigo de Freitas no finalzinho do ano passado deparei-me com esse outdoor... Meu Deus, tantos anos e viagens depois, alí estavam os olhos de Dodô - que com certeza já passou desta para melhor)- a  me perseguir... Aqui está pois, sua homenagem, pai Dodô!)

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1 comment:

  1. Estou por aqui! Volto depois com mais tempo! Abraços!

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I am one of those guys with a fat address book - maybe because all my friends tell I'm charming and clever! But as far as I´m concerned, friendship is a club of seven people which was fully by the time I was 25. We all share the same interests, and we don´t make any demands on one another in emotional terms - which is something I would avoid like the plague. It´s not that I don´t like making new friends easily...They have to cativate me at first...We all grew up in the same social, professional and geographical world that we now occupy as adults. The group of seven offers me as much security and intimacy as I require!